24 de junho de 2011

Minudências minhas

VELHINHAA avó

Minha avó era uma católica fervorosa. Mas não havia nela nada de exegeta, de modo que nunca a perturbou o facto de nada entender da missa, de deus e da história sagrada.

Aliás, a missa, toda em latim, estava lá onde devia estar, no alto (sursum corda), junto às divindades, de quem provavelmente provinha.

Os humanos, de rojo pelo lagedo, permaneciam onde sempre estiveram, muito aquém do entendimento, a anos-luz de qualquer percepção fenomenológica, nenhum deles elevando a caixa da inteligência a mais de metro e meio do solo onde plantava as couves.

E a minha avó rezava os orações (oração era palavra masculina na minha terra) sem ligar muito ao que o padre dizia. Na sua íntima confabulação com o todo-poderoso, entendia a seu bel-prazer o discurso divino que, como já se sabe, era coisa de deuses e, por conseguinte, impossível de decifrar.

Agnus dei, qui tollis pecata mundi … E a minha avó, por entre a ladainha a nossa senhora, aprendida na costura por volta dos seus dezassete anos, “miséria noves”.

A minha avó rezava “bendito é o fruto do vosso ventre, oh Jesus”. O facto de ter sido Jesus a produzir um fruto no seu próprio ventre nunca a atormentou. E por que carga de água deveria? Não poderia Jesus criar peras e maçãs na própria barriga, ou mesmo melancias e abóboras? A deus nada é impossível.

E a minha avó, a quem nunca ensinaram referentes gramaticais, que nunca vislumbrou a diferença entre um vocativo e um aposto ou continuado, viveu todos os seus dias sem entender que tipo de relação deus tinha ou pretendia ter com o mundo cá em baixo. Contudo, parecia-lhe sempre que ele tinha para com os mortais o mesmo tipo de bazófia que o Chico da barbearia tinha para com a garotada que ostentava tímidos bigodes ainda ilegíveis…

Deus, o padre, a nossa senhora, o barbeiro Chico, Jesus, o Latim, fruta que nasce no duodeno. Tudo maravilhosamente obscuro, convenientemente nebuloso. Como a própria vida.

  Post 757  (Imagem daqui)

1 comentário:

Anónimo disse...

A vida é um mistério e assim permacerá. Muito interessante esta narrativa! Ah, foi a primeira vez que tive conhecimento de variações no género dos nomes (oração). Marla