24 de março de 2012

Bifes e apartamentos ou o romance da grafonola (Parte 1)

clip_image002Quando a minha vida de estroina do ensino me fez ir até Izeda, quis o destino que lá encontrasse duas coisas que preencheriam a minha vida até hoje: um rádio de 1958 e o seu vendedor, Acácio Rebelo.

Passo a apresentar estas duas relevantes personagens do meu conto e da minha vida: o rádio de 1958 aconchegava-se numa montra de electrodomésticos e era alvo da minha quase concupiscente paixão. O meu pai tinha-me dado um exactamente igual quando eu fiz, em simultâneo, oito anos e a segunda classe, ambos com distinção; o Acácio era um velhote, da idade que eu tenho agora, mais ou menos acomodado na vida, empoleirado num negócio de apartamentos mal acabados e, claro, na loja de electrodomésticos que já fica referida. Com o tempo, lá por meados do segundo período, já ele me conhecia e cumprimentava, a mim e à minha desusada penúria, já eu não lhe escondia o verdadeiro amor que nutria pelo rádio que ele tão descaradamente me atirava aos olhos, todos os dias da minha ortorrômbica vidinha de professor de Inglês.

Num desses acalentados momentos de embevecido platonismo em que olhava o rádio sob tantas perspectivas quantas me permitia o vidro embaciado, reparei que, mais ao fundo do armazém, havia uma grafonola lindíssima, toda esfuziante na sua corneta de ramagens, soerguendo-se, altiva, de uma base da mais lustrosa madeira que já alguma vez tinha visto nas grafonolas. Fiquei sem fôlego! Mas, como sou um tipo fiel, de um amor de cada vez, voltei a concentrar-me no objecto que se encontrava mais próximo e, apesar de caro para o meu desventrado bolso, imensamente mais acessível que a estonteante grafonola.

Agora, para descrever o Acácio Rebelo com a mestria que merece, seria necessária mão mais firme e olhar mais penetrante do que o meu. Para isso, terei que ganhar algum balanço. Assim sendo, termino por aqui a primeira parte deste romance que continuará no próximo post com a descrição que conseguir fazer do meu eterno amigo Acácio.   (continua)

      Post 825           (Imagem minha, rádio meu… :)

19 de março de 2012

Hoje lembrei…

A Praia de Mira era um rendilhado de rios, lagos e lagoas que atormentaram a minha meninice…

clip_image002Q

Quando eu era criança, minha mãe fazia-me atravessar uma infinidade de cursos de água, alguns deles rudes e violentos demais para a minha compleição de menino frágil. Ela me segurava então pelo cachaço, enquanto caminhávamos lentos, eu à frente e ela atrás, sobre estreitas e oscilantes comportas de madeira que tentavam reter alguma água para a direccionar aos moinhos da Canhota. Eu, tonto de medo, olhava para baixo, lá onde a água, contrariada pela barragem, se debatia com estrepitoso fragor.

clip_image004Naquele tempo a praia de Mira era demasiado húmida para o meu gosto de garoto de terra seca, criado sobre batatais a perder de vista, ou perdido entre milharais sombrios, cheirando a guano e pó.

Meus avós maternos eram da praia e viviam num palheiro encantado, de madeira listrada verticalmente em castanho e branco. Um dia, morreram. Não tive escola nesse dia, e nunca mais fui obrigado a atravessar os rios borbulhantes do meu pavor…

    Post  824      (Imagens minhas)

17 de março de 2012

obsessões do meu ipod (32)

marisa Monte
Ainda Bem não nos traz, de facto, nada de novo. Mas para quê a novidade? Uma canção é apenas uma canção, não um catálogo de gadgets. E esta é, como muitas outras canções, mais uma que passa despercebida pelo facto de ser apenas… perfeita.  E é tudo.
Marisa Monte é uma voz absolutamente excepcional, de uma delicadeza ímpar.
Mostro-lhes duas versões de Ainda Bem, uma delas melhor que a outra, em minha modesta opinião. (Podemos entreter-nos a discutir qual a melhor versão e porquê.)
Um abraço, ao som de Marisa.

     Post 823       (Imagem daqui)

14 de março de 2012

Desta vez é o décimo primeiro ano…

jeováTenho um aluno no décimo primeiro ano que é Testemunha do Jeová. (Sou testemunha disso, posso garantir-vos). Esforço-me por lhe ensinar uma língua profana, leiga, quase obscena, que se chama Inglês. Ele esforça-se por me ensinar um código ascético, inumerável, divino, flatulento que se chama Tetragrama YHVH, ou seja, o tal Jeová.

Tendo-me certamente sinalizado como uma criatura em iminente risco de se perder nas profundezas do Inferno, chamou a si a generosa e ciclópica tarefa de me reorientar o estafado percurso, enfileirando-me no rebanho dos escolhidos para as delícias do paraíso. Paulatinamente, pedagogicamente, tem vindo a fornecer-me materiais indispensáveis para a minha progressão segura a caminho da manada dos bem-aventurados.

Todas as semanas me presenteia com livrinhos escritos de modo simples e directo, construção frásica primária, adequada ao meu nível cognitivo, profusamente ilustrados com desenhos meticulosos, Cristos de cabelo curto e barba preta aparada ao gosto dos baladeiros de 60, paisagens idílicas de rios passando serenos por debaixo de pontes curvas de madeira e profetas de gravata laminada e fatos de merino, famílias felicíssimas em volta de uma mesa de toalha aos quadradinhos, jovenzinhas assexuadas e raios de luz azul vindos de uma nuvem (?) onde se inscreve a palavra Jeová.

A minha intenção para com este meu aluno é muito menos luminosa. Adoraria que ele se dedicasse aos pronomes pessoais formas de complemento e ao passado do verbo to be. E inundo-o de fichas de gramática, nem eu mesmo sei já se com isso pretendo ensiná-lo ou se se trata de uma pequena vingança como represália aos materiais didácticos com que ele me inunda semanalmente.

E é neste pé que temos estado, até que ele fez ontem o teste final do módulo 3. E tirou 10. Quanto a mim, ainda não fiz o teste final da doutrina de Jeová. Sei que ele não me dispensará dele, até porque Jeová que se preze é muito mais chato que qualquer professor de Inglês. E tremo só de pensar que poderei confundir Armageddon com manjedoura ou Sentinela Alerta com Serenella Andrade. (Ele também confundiu him com his e witch com watch…)

   Post 822      (Imagem daqui)

3 de março de 2012

A palavra dos outros

raposaO Estúdio Raposa

Há vários anos que venho seguindo este blogue, o Estúdio Raposa, de Luís Gaspar, o mais profissional, o mais sério e o mais artístico espaço de literatura em suporte áudio que tive a ventura de conhecer. Egoistamente, reservei-o para mim, embora o tivesse colocado, desde o exacto momento em que o descobri, na minha lista de blogues, na banda lateral. Como sei que as nossas listas de blogues nem sempre conseguem suficiente divulgação daquilo que merece ser divulgado, é meu privilégio apresentar aqui um dos mais consequentes trabalhos da blogosfera na área da literatura em língua portuguesa.

Veja-o aqui e navegue-o calmamente. Tem muito por onde e vale certamente a pena. A qualidade de som é absolutamente envolvente.

     Post 821          (Imagem do site)