O velho Januário ainda ensina. Tem quase 65 anos e ainda não descobriu que pode haver vida para além das aulas de História que lecciona magistralmente há quarenta anos.
Ultimamente, as suas aulas já não colhem tanta admiração por parte dos seus ouvintes como colhiam no passado em que Januário entendia e explicava a História como sendo histórias coerentes entre si, contadas à roda da fogueira, como na canção, sempre na perseguição do saber, da palavra certa, culta, lavrada, da palavra de honra.
De facto, do alto dos seus 65 anos, Januário vinha ultimamente vislumbrando até alguma despudorada aversão por parte dos seus actuais ouvintes, muito mais interessados na construção sistemática de divertidas barraquices, servidas por alguns desbocados impropérios e por ostensivas e constrangedoras deselegâncias, que Januário se habituara a considerar meros sinais dos tempos, deficientes apropriações que a sua velhice fazia do fenómeno social presente.
Seja porque, naquele dia, o almoço não lhe caíra muito bem, seja porque os seus ouvidos estivessem naquela aula um pouco mais impressionáveis, seja porque tivesse nesse dia contemplado, mais atentamente que de costume, o seu ar macerado e as suas irreverentes rugas desbravando caminho por onde fora em tempos um rosto, Januário, no limite da sua resignação, aproximou-se do seu ouvinte mais tenazmente grosseiro e ameaçou-o com uma expulsão, ao mesmo tempo que acentuava as suas palavras com duas palmadas no seu ombro direito.
No final da aula, o aluno assim repreendido aproximou-se de Januário e garantiu-lhe que não admitia que lhe batessem, que nem ao seu próprio pai o admitia, e que se o velho Januário ousasse tocar-lhe de novo, ainda que tão levemente como o havia feito, essa seria a última coisa que faria na sua vida (o discurso é meu, mas o sentido foi exactamente este).
No dia seguinte o irmão mais velho do aluno, um peralta desenhado a régua e esquadro, camiseta borrada de mostrengos e uma crista moicana no toutiço, veio à escola reafirmar a ameaça do caçula, vociferando que não se fala assim a um aluno em pleno desenvolvimento da sua personalidade e que seria ele próprio (o moicano) a tratar do assunto do velhote se este voltasse a repetir a façanha.
Três dias depois Januário enfrentava a mesma turma. Lá estava o aluno, olhando o velho como se o visse pela primeira vez, sorriso trocista no beiço de baixo e barrete enfiado nas orelhas (a sua conquista mais recente ao “rigor” do regulamento interno).
Sem nunca olhar o aluno de frente, Januário dirigiu-se à turma nestes termos: “Meus senhores, quero aqui apresentar publicamente as minhas desculpas ao aluno a quem repreendi na última aula. Quero penitenciar-me por tê-lo humilhado tanto e sobretudo por lhe ter dado tanto tabefe e tanto cachação.”
A turma ficou por momentos em silêncio total, o que não acontecia nas aulas de Januário desde 1985. Até que um aluno lá do fundo, um pouco a medo, balbuciou: “Mas, professor, o professor não lhe fez nada disso. Só lhe deu duas palmadas no ombro…”
E Januário, surpreendido, falou: “Quê? Então eu não bati no aluno? Eu não lhe dei vários tabefes naquela sua carinha desdenhosa, eu não lhe dei uma surra das antigas?!” “Não, professor, não deu. Apenas lhe deu duas palmaditas no ombro, e nem sequer foram com força”. “Têm a certeza disso?- teimava o professor, incrédulo.” “Temos” – disseram vários alunos, rindo da cara estupefacta de Januário.
“Bom, paciência! - continuou o docente – Na minha idade já vamos confundindo tudo, ao ponto de, inclusivamente, tomarmos desejos por realidades. Uma tristeza! Isto da velhice…”
A bronquice e obtusidade da turma não lhe permitiu entender a ironia…
E pronto. A História história termina aqui, embora Januário seja um verdadeiro compêndio de casuística, uma colectânea de contos fabulosos, um cromo cheio de histórias mirabolantes, como aquela que lhe aconteceu na segunda-feira seguinte a estes incidentes, quando o nosso sexagenário teve de ir a pé para casa, visto que o seu carrito de 1990 estava sem rodas, pousado sobre quatro tijolos, situação pouco propícia a um deslizamento minimamente confortável. Mas, tal como a Segunda Grande Guerra Mundial nada teve a ver com Hitler, também este incidente não pode ser relacionado com nenhum dos últimos acontecimentos aqui contados.
Por vezes, nem mesmo a História relaciona convenientemente os factos, e Januário, como eu disse, é um ás da mais inverosímil casuística. Coisas da idade. Ou da História…
Post 862 (Imagem daqui)
5 comentários:
Muito bom... e claro que não podemos relacionar os factos. Faz-me lembrar 2 riscos brutais no meu carro novo(feitos à porta da escola) quando tive um CEF pouco recomendável...:)
Estranho seria haver um CEF recomendável...:)
joao de miranda m.
Do melhor. Obrigado, Maranhão por esta estorinha.
Viva o Januário ... quase me senti na sua pele, quando depois dum ligeiro tabefe num aluno de 14 anos, tive um processo disciplinar .... na ESMC
que grande porra...
Também tenho destes desejos! Algumas personagens merecem uns belos tabefes... Adorei a história do Januário. :) Marla
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