Era um sapato classe média. Média alta, por causa do salto alto. Era um sapato que saltava alto, sonhava alto, falava baixo. Sonhava afagar o pé de princesa, de milionária, de economista loira, de artista de cabaré, de puta. De Cinderela. Conheceu o pai, um operário que o aconchegou contra o peito (para lhe dar graxa e pôr as solas). Conheceu o patrão que o chutou e lhe roubou a mais-valia. Conheceu Sócrates, o filósofo, que tentou calçá-lo sem sucesso. (Sócrates tinha um pé tão descomunal como a cabeça). Conheceu Sócrates, o governante, que lhe encurtou o cadarço e lhe aumentou o iva. Conheceu a princesa que não suspeitou da sua existência. Conheceu a milionária que o rejeitou por falta de griffe. Conheceu a economista loira que o contou várias vezes e disse que eram vários. Conheceu a artista que lhe prometeu vida de luzes, mas caiu no palco e nunca mais usou sapatos. Conheceu a puta que o comprou por trinta noites. Conheceu a Cinderela-povo que o desejou ardentemente, mas que continuou descalça, nunca ninguém me explicou porquê…
(Imagem daqui)
2 comentários:
Excelente!
Texto adulto com tintas de criança.
Pobre sapato, orfão de pé.
Pobre povo, calçado de desejo.
OF
Um longo poema, este curto comentário.
(Grandes escritores escrevem poemas mesmo sem querer).
joao de miranda m.
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