Odete Ferreira “Auto da Desorientação” (Primeira Parte)
Estávamos no ano 2000 e Odete Ferreira produzia toda a obra dramática (e artística em geral) para as Escolíadas do tempo. Obviamente, a sua intervenção saldava-se sempre por vitórias esmagadoras da escola onde leccionava. Espero que a autora me perdoe plantar flor tão nobre em tão modesto canteiro.
Além disso, vou ser um pouco perverso para com os meus leitores e publicar o auto em folhetins, obrigando-os a voltar cá mais vezes. (Não imaginam como caiu a popularidade do Tralapraki, desde a eleição da maioria reaccionária)
Eva: Chamar-vos aqui eu quero, Ó sábias almas errantes, P’ra que digais quanto antes, Só a verdade, assim espero. Aqui haveis de contar, Com vossa arte tamanha, Se voltamos para o mar Ou se emigramos pra Espanha Que Portugal, vinde ver, Já não tem de que viver. Ana Lúcia: (Ouvem-se pancadas na mesa) Ou lá! Pedro: Ah, má hora este é! Quem é? Gil Vicente: Homem de pé! Gil Vicente, servidor de Portugal E teatreiro real. Pedro: Agora, aramá! Porque viestes vós cá? Gil Vicente: Asinha cheguei aqui, A este país sem jeito, Que já não estuda direito As farsas que eu escrevi. Ora já não há respeito, Neste país de farsantes De ricos e pobretões De gente que anda a penantes E de grandes glutões. Pedro: Vejo que estais informado! Que vedes telejornais E que ledes os jornais. Eu cá não gosto de ler! Não estejais arrenegado Com maus tratos que vos deram Injustiças sempre houveram! Eu sou um pobre estudante Não sou ministro de estado Não sou jota ou assessor. Mas olhai que queria ser! Mas prontos, não sou letrado Mas não sou ignorante E hei-de ser um doutor, Isto sim é coisa séria, Um doutor lá das finanças Para gerir as poupanças Que faça engenharias Falcatruas, porcarias Neste país de miséria. Gil Vicente: Tu, um dia, seres doutor? Mas que patranha maior! Só se fores da mula ruça No dia que a vaca tussa! Tu não sabes português Quanto mais economês! Ouve bem agora aqui! Política, é que é pra ti Não precisas de estudar! Tu assinas o cartão Aprendes a bajular E a dar opinião Mesmo sendo inconsciente Dás palpites no jornal | E vais ver que de repente Ficas intelectual E quem sabe, Presidente! Maura: Eu estou quase a flipar! Não sou afim de estudar. Gosto bué de novelas E da escola das estrelas Estudar é uma chatice O que eu queria era ser misse Quem vence é quem tem espertice Quem nos outros se marimba E quem for estrela pimba. Quem fizer televisão Pode ser ignorante Mal falante, parolão Mas tem o mundo na mão Eu quero ser desta gente Ajudai-me, Gil Vicente Gil Vicente: Televisão? Dizes tu? T’ arrenego, belzebu! Mas... Se tu queres fazer novelas E outras coisas que tais Ó rica, tu diz balelas “Que giro!” e outras mais Mete-te no social Manda foto pró jornal Vai às festas a Cascais! Bruno: E eu, mestre Gil Vicente? Sou como vós um actor! Não me quereis fazer um jeito? Dai-me fama e bom proveito! Isto não está pr’a culturas Ser artista é o caraças O teatro está às escuras Só o futebol tem massas! Há-de um actor ter futuro Ou comer sempre pão duro? Gil Vicente: Pede esmola, ora essa! Sempre disse o presidente Que um artista não é gente Se não tem fundos, que peça! Pra viver também pedi Um subsídio real Pisei palcos, escrevi Porque a arte em Portugal É tolice que acontece Se queres na vida cantar Tens de andar sempre a esmolar Malhas que o Império tece! Bruno: O vosso conselho é duro Já nem vós nos fazeis rir O que nos traz o futuro? Para onde havemos de ir? Gil Vicente: Aí não podeis folgar Muito menos teatrar! O melhor é emigrar! Ide pra terras de leste Para o sul ou pro Evereste Ou retornai-vos ao mar! Eu vou-me já pôr a andar Que este país está de tanga E vai p’rá guerra fandanga. (Marcha militar) (continua) |
Post 760 (Imagem daqui)
1 comentário:
Ai o meu auto da desorientação!
As minhas tantas palavras foram-se com a casa velha. Permanecem as sombras nos meus amigos.
Obrigada, João!
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