2 de julho de 2011

a palavra dos outros

Odete Ferreira   “Auto da Desorientação”  (Primeira Parte)

Gil vicenteEstávamos no ano 2000 e Odete Ferreira produzia toda a obra dramática (e artística em geral) para as Escolíadas do tempo. Obviamente, a sua intervenção saldava-se sempre por vitórias esmagadoras da escola onde leccionava. Espero que a autora me perdoe plantar flor tão nobre em tão modesto canteiro.
Além disso, vou ser um pouco perverso para com os meus leitores e publicar o auto em folhetins, obrigando-os a voltar cá mais vezes. (Não imaginam como caiu a popularidade do Tralapraki, desde a eleição da maioria reaccionária)

Eva:

Chamar-vos aqui eu quero,

Ó sábias almas errantes,

P’ra que digais quanto antes,

Só a verdade, assim espero.

Aqui haveis de contar,

Com vossa arte tamanha,

Se voltamos para o mar

Ou se emigramos pra Espanha

Que Portugal, vinde ver,

Já não tem de que viver.

Ana Lúcia:

(Ouvem-se pancadas na mesa)

Ou lá!

Pedro:

Ah, má hora este é!

Quem é?

Gil Vicente:

Homem de pé!

Gil Vicente, servidor de Portugal

E teatreiro real.

Pedro:

Agora, aramá!

Porque viestes vós cá?

Gil Vicente:

Asinha cheguei aqui,

A este país sem jeito,

Que já não estuda direito

As farsas que eu escrevi.

Ora já não há respeito,

Neste país de farsantes

De ricos e pobretões

De gente que anda a penantes

E de grandes glutões.

Pedro:

Vejo que estais informado!

Que vedes telejornais

E que ledes os jornais.

Eu cá não gosto de ler!

Não estejais arrenegado

Com maus tratos que vos deram

Injustiças sempre houveram!

Eu sou um pobre estudante

Não sou ministro de estado

Não sou jota ou assessor.

Mas olhai que queria ser!

Mas prontos, não sou letrado

Mas não sou ignorante

E hei-de ser um doutor,

Isto sim é coisa séria,

Um doutor lá das finanças

Para gerir as poupanças

Que faça engenharias

Falcatruas, porcarias

Neste país de miséria.

Gil Vicente:

Tu, um dia, seres doutor?

Mas que patranha maior!

Só se fores da mula ruça

No dia que a vaca tussa!

Tu não sabes português

Quanto mais economês!

Ouve bem agora aqui!

Política, é que é pra ti

Não precisas de estudar!

Tu assinas o cartão

Aprendes a bajular

E a dar opinião

Mesmo sendo inconsciente

Dás palpites no jornal

E vais ver que de repente

Ficas intelectual

E quem sabe, Presidente!

Maura:

Eu estou quase a flipar!

Não sou afim de estudar.

Gosto bué de novelas

E da escola das estrelas

Estudar é uma chatice

O que eu queria era ser misse

Quem vence é quem tem espertice

Quem nos outros se marimba

E quem for estrela pimba.

Quem fizer televisão

Pode ser ignorante

Mal falante, parolão

Mas tem o mundo na mão

Eu quero ser desta gente

Ajudai-me, Gil Vicente

Gil Vicente:

Televisão? Dizes tu?

T’ arrenego, belzebu!

Mas...

Se tu queres fazer novelas

E outras coisas que tais

Ó rica, tu diz balelas

“Que giro!” e outras mais

Mete-te no social

Manda foto pró jornal

Vai às festas a Cascais!

Bruno:

E eu, mestre Gil Vicente?

Sou como vós um actor!

Não me quereis fazer um jeito?

Dai-me fama e bom proveito!

Isto não está pr’a culturas

Ser artista é o caraças

O teatro está às escuras

Só o futebol tem massas!

Há-de um actor ter futuro

Ou comer sempre pão duro?

Gil Vicente:

Pede esmola, ora essa!

Sempre disse o presidente

Que um artista não é gente

Se não tem fundos, que peça!

Pra viver também pedi

Um subsídio real

Pisei palcos, escrevi

Porque a arte em Portugal

É tolice que acontece

Se queres na vida cantar

Tens de andar sempre a esmolar

Malhas que o Império tece!

Bruno:

O vosso conselho é duro

Já nem vós nos fazeis rir

O que nos traz o futuro?

Para onde havemos de ir?

Gil Vicente:

Aí não podeis folgar

Muito menos teatrar!

O melhor é emigrar!

Ide pra terras de leste

Para o sul ou pro Evereste

Ou retornai-vos ao mar!

Eu vou-me já pôr a andar

Que este país está de tanga

E vai p’rá guerra fandanga.

(Marcha militar) (continua)

Post 760     (Imagem daqui)

1 comentário:

Anónimo disse...

Ai o meu auto da desorientação!
As minhas tantas palavras foram-se com a casa velha. Permanecem as sombras nos meus amigos.
Obrigada, João!