1 de maio de 2012

ser poeta é ser mais cuspido (1)

cartoonQuando eu era bem mais jovem, um pouco depois de Pearl Harbour, tinha a estóica mania de escrever versos. Escrevia linhas de dez sílabas, acentuadas ao gosto da arcádia. E meu pai, que escrevia versos do tipo o sol-posto abençoado a fugir de Portugal parece um ovo estrelado sobre a américa central, também estoicamente me avisava que um dia me arrependeria amargamente por me armar em poeta pre-romântico. Ele afirmava muitas vezes que a poesia faz de nós umas abéculas sem qualquer serventia, uns labregos lunáticos e parvinhos, sofisticadamente apaneleirados e, o que é pior, eternamente pelintras.

Disse-me isto pela última vez às oito da manhã de um risonho dia de primavera e, depois do almoço, já eu tinha decidido nunca mais cruzar duas linhas que rimassem, ainda que fosse por acaso. Nunca mais fui capaz de escrever um poema que tivesse jeito, mas fiquei homem macho e desusado admirador do belo sexo, embora não me tivesse livrado da pelintrice.

Pois, mas a minha fama de poeteiro já tinha corrido por dez léguas em redor e, sempre que os meus amigos emigrados (regressados de França para as férias aqui no puto, em busca do sol e do mar de Mira) me apanhavam encostado a um qualquer balcão, vinham logo com aquela galra dos poemas fantásticos que eu escrevia e que agora, com o passar dos anos e a aproximação da idade de todas as perplexidades, me tinham guindado a uma espécie de génio homérico da lapiseira, com direito exclusivo a abraços, entusiamo e perdigotos. E era sempre com muita admiração, muito vinho e alguma ramela que mo lembravam…

Até aqui, tudo mais ou menos bem. Mas só ontem à tarde, quando o Marito se meteu pelo meu portão adentro, eu compreenderia com total propriedade as palavras de meu pai sobre o arrependimento de se ter sido o maior poeta da aldeia… e de dez léguas em redor, vá lá, uns tantos anos depois de Pearl Harbour.

(Continua, se a tanto me ajudar engenho e arte)

     Post 833         (Imagem daqui)

4 comentários:

AEfetivamente disse...

:) Hilariante (perdigotos? lol) e ao mesmo tempo... poeticamente terno:) Não te livras!!!

odete ferreira disse...

Génio homérico da lapiseira? Fabelhaft!
Também gostei da admiração, da ramela profusamente regados. Com vinho de Masouco?
João, todo o texto está aparentemente cínico e essencialmente poético. Lindo!
of

Anónimo disse...

Deliciosamente divinal! Esta arte poética geradora de "abéculas" de trejeitos abichanados... o teu pai lá sabia! :) Gargalhadas sem fim a ler este texto! Marla

Anónimo disse...

Fatima,
Mas estou-me a esforçar. Um dia ainda me livro disto...

Odete,
Não! Corrente, de pacote. Masouco era em 2007, no tempo dos vinhos gordos...

Marla,
És uma jovem de riso à flor da pele... As gargalhadas são mérito teu, não habilidade minha.

joao de miranda m.