Em 1974, um punhado de militares deitou abaixo um regime opressor de 40 anos e proclamou as amplas liberdades. Eu era um desses militares. Anónimo, esperançoso e amedrontado, a minha participação foi irrelevante. Tinha 22 anos, militava então num movimento sem nome que se empenhava na contestação da Guerra Colonial e das profundas injustiças sociais. Manifestávamo-nos ao fim da tarde, no Largo da Portagem, por entre agentes armados. Ordeiramente.
Quando me chamaram para a tropa imaginei de imediato a situação comum de ir bater com os costados em África. Mas não. Naquela madrugada, em Mafra, feito Cadete na véspera, acordei estremunhado com um movimento inaudito. Saímos sem saber para onde. De vez em quando eu espreitava o escuro, içando a lona da Berlier. Estávamos a andar para sul, achava eu. Não parecia o costumeiro caminho da carreira de tiro.
Quase todos os Portugueses souberam, antes de mim, o que estava a acontecer.
O regresso
Depois, voltámos para casa, aliviados e muito confusos. Gerámos os nossos filhos, envoltos numa fé inocente , feita de pradarias verdes, de liberdades matinais, de brisas esperançosas. Quando eles nasceram, decidimos colocá-los nesse mundo novo, asséptico e promissor. Que lindas iam ser as nossas crianças!. E que boas ficariam, respirando com naturalidade essa brisa revigorante da Liberdade e da Autoridade Democrática.
A traição
Porém, todos nos enganámos. A inocência de Abril foi traída. A Liberdade plastificou-se. As verdes pradarias desbotaram e foram conspurcadas. Vândalos, arruaceiros, perigosos cretinos, embarrigados de ignorância arrogante e soberba pulularam pelas cidades. Traficantes instalaram-se impávidos. Governos recostaram-se, discutindo se é bom ou mau ser paneleiro. A anarquia surgiu rodeada de novíssimas teorias pedagógicas. O imbecil politicamente correcto e a morte da veemência são valores supremos nesta sociedade esvaziada. O culto do imediato e do pronto sem dor desembocou, naturalmente, nesta perversão de desejar permanecer idiota para sempre.
A brisa que passa traz maus presságios e cheiro de enxofre, dia após dia, ano após ano.
Filhos da Madrugada
Foi nessa conjuntura que cresceram os nossos filhos delinquentes. Nos seus olhos há como a súplica violenta e muda de serem ajudados. Eles não foram ensinados a ter consciência, a reflectir, a analisar, a raciocinar, a perdoar, a respeitar. Construíram-se sozinhos, cercados de rodriguinhos bestas e de apoio exagerado. Ter tudo acabou por tudo lhes tirar. E eis o fenómeno que nenhum desses espertíssimos pedagogos tinha previsto. Ao empossar as crianças de tantos direitos à arrogância, à má educação, à preguiça, à libertinagem; ao prescrever que os adultos se devem baixar diante da opinião duvidosa desses engraçados déspotas; ao lhes atribuir uma opinião respeitável; ao lhes desobstruir e aplanar todos os caminhos, construíram pequenos monstros capazes de esbofetear os pais, de violar as irmãs, de emporcalhar tudo à sua volta, de assaltar e matar velhos indefesos, sem um estremecimento…
Fomos nós que os fizemos assim. Eles têm olhos de ódio e de desprezo quando atentam na nossa amabilidade e submissão. Os seus olhos estão sempre a dizer-nos: “Eduquem-me, palhaços!”