Um dia destes acordamos e está tudo a rir à gargalhada à nossa volta. A princípio pensaremos que é da nossa cara grotesca que se riem (o acto de acordar vem sempre revestido de grande eficácia humorística, pálpebra gorda, crina desgrenhada, olhar aparvalhado, tropeções), mas logo vemos que se riem uns dos outros e afinal não é no nosso quarto, mas na televisão que deixámos ligada a noite inteira. Ao fim de uns minutos descobrimos o Gaspar, o Paulo, o Aguiar Branco a Paula Teixeira, o Miguel dos Cursos, o Santos Pereira, o Macedo, etc, a dizer ao povo, entre ruidosas gargalhadas, que tudo aquilo era uma brincadeira para ver até onde aguentávamos sem nos desmancharmos, uma espécie de apanhados, uma encenação poderosa feita por uns amigalhaços entediados com urgente e pungente necessidade de se divertirem à custa da nossa cara ramelosa, do nosso ar aparvalhado e dos nossos urros contra o governo e a ditadura do capital financeiro.
Vamos depois lavar a cara, pentear a crina e escovar os neurónios, para ver se percebemos melhor. Então era tudo uma brincadeira? Aquilo do milhão de desempregados, dos cortes nos salários, da troika, da ditadura do Passos, da bancarrota, da dívida soberana, do mega-implosivo-orçamento, era tudo uma peça que os rapazes da governança nos pregavam a todos? Então quer dizer que vou voltar a ter o salário inteiro já a partir de logo à tarde, que na verdade nunca tive corte nenhum e que serei reembolsado do que me pareceram cortes, que terei de volta o meu 13º, 14º e talvez o 15º mês, e os feriados de outubro e de dezembro, e o irs reembolsado, e o iva a 6 e 21%, e a escola sem tramoias nem psicopedagogos, e o Crato, afinal, a mostrar que percebe de Educação e que jamais houve submarinos e que afinal o Clio é um óptimo carro para as deslocações na nacinha, e tudo isso agora que eu estava a começar a gostar deste espartanismo todo, que eu estava a entrar, todo contente, na brincadeira que eles inventaram? Ah, não! Quero de volta a austeridade, os cortes salariais, o aumento do irs e do iva, os aumentos da luz e da gasolina e as irresistivelmente cómicas patifarias dos nossos adoráveis governantes.
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