Algumas das muitas notícias tortuosas que nos chegam por vias alternativas falam, com insistência maior que a desejada, da iminente suspensão da democracia, esse luxo pequeno-burguês, pelo menos no que se refere a uma das suas linhas avançadas – a liberdade de expressão. No entanto, a liberdade de expressão há muito tempo que se encontra condicionada: há apenas cinco ou seis opiniões à solta nas sociedades burguesas, todas elas perfeitamente absorvíveis, delas não resultando nenhum perigo sério para o status quo. Ainda assim, três ou quatro destas apresentam-se sempre como socialmente desaconselháveis, pelo que são desprezadas à partida, ficando sempre apenas duas opiniões socialmente elegíveis que, sob uma análise um pouco mais rigorosa, não passam de uma única (tal a semelhança entre as duas), que é sempre a mesma e que vigora desde 1143, refundida, reeditada, aumentada, corrigida, catequizada e promovida ao longo destes últimos oitocentos e sessenta e nove anos.
Quanto a mim, que vivi sem a democracia trinta anos e com ela (vá lá, sejamos complacentes) outros tantos, ainda não entendi muito bem para que me serviu, além de me ter sugerido uma ideia ficcional de que ela ajudaria a melhorar a minha vida real (que é uma carteira mais cheia, uma mesa mais farta e uma cama mais bem frequentada), ideia ficcional que não só não se concretizou, como acabou por prejudicar seriamente o meu crescimento intelectual e hominídico…
Está claro que esse luxo liberal, essa prenda republicana, me permitiu mostrar quão estúpido eu podia ser por trás da inteligência que parecia ter. E quando a democracia atingiu o orgasmo (que, em minha opinião, ocorreu por volta de 1980, tendo sido, portanto, um orgasmo prematuro, se tivermos em consideração o ano do seu renascimento oficial, 1974) todos nós escancarámos ao mundo e aos quatro ventos a nossa riquíssima estupidez lusíada, em livrinhos malandros, em filmes patetas, em esborratadas telas e mais tarde em blogs mais ou menos imbecis.
Se, como acredito (estou cada vez mais crédulo, e nem sequer escolho criteriosamente o objecto da minha ditosa credulidade), nos for cortado o direito à palavrosa tontearia que nos caracteriza há quarenta anos, poderemos aproveitar o desagradável ensejo de um novo silêncio amordaçado para pensarmos calados. Este silêncio imposto terá que ser obrigatoriamente democrático e transversal, calando primeiro todos os políticos, dirigentes partidários, governantes, deputados, ricalhaços, directores, gestores, opinadores e assessores de tudo o que ainda mexe, e só depois a vox populi. Só depois, mas também, obviamente. A Bem da Nação. Cumpra-se.
PS: Se, depois disto, alguém nos devolver a democracia, tanto melhor. Mas, já agora, que traga salários melhores para todos e um toque de dignidade no papel de embrulho…
Post 860 (Imagem daqui)