Vivemos hoje um novo encolhimento democrático. (Já repararam neste começo? Com um começo destes, o post fica praticamente resolvido). Não tenho certeza se todos nós o vivemos. Eu, pelo menos, vivo. Queria poder vestir jeans de cu caído, mas não á para a minha idade. Queria beber uns copos com os amigos, mas não é para a minha saúde. Queria dizer umas coisas a um monte de gente, mas não é para a minha posição. Queria uma tarde de maluqueira, mas não é para a minha carteira.
Há 200 anos que a civilização ocidental persiste no conceito de democracia como forma de governo que espelha a sociedade, i.e., o povo. Ora, o povo é um dos conceitos mais abstractos que se pode imaginar (tão abstracto quanto elástico) e, portanto, o regime democrático é a governação abstracta da própria elasticidade. A democracia é hoje uma forma simplista de governação: o povo é que decide. Sim, certamente o pooooooovo decide. Mas então e eu? Se sou povo, porque é que eu não decido nada? Nem sequer decido o que quero almoçar. O médico decide o que devo almoçar e a minha mulher decide o que eu almoço. Estarei porventura a decidir alguma coisa quando coloco um voto na urna? Claro que não. O máximo que eu estou a fazer é uma escolha. E, até hoje, sempre péssima.
Senão, vejamos. Colocam-me à frente dois indivíduos. Um deles é jovem e parvo e o outro é velho e parvo. Vou às urnas e escolho o velho que, apesar de ser parvo, é mais parecido comigo, pelo facto de ser velho, já que parvo também o outro o é. Imaginemos que ganha o velho parvo. Este, obviamente, começa logo a fazer parvoíces. Aí, eu fico com a certeza de que escolhi o melhor candidato, visto que tem menos tempo pela frente para fazer parvoíces.
Suponhamos agora que é o jovem parvo que ganha as eleições. Como votei no velho parvo, não me sinto responsável pelas parvoíces deste governo. A democracia é, de facto, um regime generoso. Qualquer que seja a tua escolha, a bondosa democracia te absolverá, e o mesmo fará em relação aos escolhidos, quer sejam apenas parvos quer acumulem doses generosas de mafiosa corrupção.
E assim, acabo por aceitar a escolha dos outros. Na minha cabeça vai estabelecer-se um argumento decisivo: tenho que reconhecer que este jovem parvo vai produzir as suas parvoíces muito mais lentamente do que o velho parvo o faria, uma vez que tem mais tempo para as produzir. Serão, portanto, parvoíces de melhor qualidade, mais planificadas e reflectidas. Há toda uma possibilidade de ele construir um sistema totalmente parvo, em que todas as parvoíces fazem parte de uma superestrutura sistémica da mais elaborada e requintada parvoíce. E quando a parvoíce se torna sistémica, deixamos de a perceber como tal. E eis um estado muito próximo do paroxismo da felicidade.
(Eu não disse que tínhamos chegado a este ponto, nem me referi ao presente governo nem a este vilipendiado país. Estava a falar em conceitos abstractos… e elásticos. Vocês é que têm a mania de ficar fabricando concretismos para vestir as abstracções mentais que formulo…)
Post 870 (Imagem daqui)