O Dr. Salgado não sabia ao certo se o descadeiramento do seu esqueleto configurava ou não a tal emergência absoluta, mas, na dúvida, premiu disfarçadamente o botão de chamada e esgueirou-se para dentro da cabina de riquíssimo alumínio, tão logo a porta amavelmente se lhe abriu. Às seis da tarde de um dia de Setembro ainda quente e arrastado, o Dr. Salgado verificou que não conseguia cumprir a cem por cento a meta a que se propusera desde o primeiro dia de aulas: levar a primeira semana a bom termo, sem desancar ninguém na sequência de alguma repentina e desusada perda de lucidez, sem se queixar de nada, ainda que isso configurasse um projecto demasiado ambicioso, sem ficar afónico ao fim de duas ou três aulas e sem se descadeirar todo, de tanto subir e descer umas escadas demasiado íngremes, feitas por um jovem arquitecto, destinadas a outros jovens, que nada neste mundo parece já feito para os velhos, na medida em que essa opção consubstanciaria um imenso erro financeiro, uma aposta em cavalo que perde, um investimento falido. Ora, seis lances de escada ainda representam um bom esforço orçamental para o governo e outro tanto de cruzes e de fémures para o Dr Salgado. Teve que se encostar logo ali, no primeiro vão, estendendo os olhos piscos para o alto, a medir o quanto ainda faltava para a sala onde trinta matulões o esperavam para tirar | um sarro com a sua careca luzidia, a sua postura disforme, a sua lentíssima e trôpega locomoção. E, espreitando na esquina, ao longo do interminável corredor, Salgado arrastou-se até o elevador novo, instalado por um jovem mecanotécnico e destinado nunca o Salgado soube a quem, visto que lhe fora dito tão somente que o aparelho se destinava a ser usado apenas em situação de emergência absoluta. Não sabia ao certo se o descadeiramento do seu esqueleto configurava ou não a tal emergência absoluta, mas, na dúvida, premiu disfarçadamente o botão de chamada e esgueirou-se para dentro da cabina de riquíssimo alumínio, tão logo a porta amavelmente se lhe abriu. Mas entrou quase aterrorizado, por estar a usar sem autorização superior, um luxuosíssimo meio de subir três andares que, sabia-o agora de fonte segura, não lhe estava de facto destinado. (Imagem daqui) |
2 de outubro de 2010
O elevador
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1 comentário:
Belo artigo. Pura literatura.
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