Meu bisavô era maneta, minha avó era zarolha. Meu pai era moleiro e eu sou, evidentemente, estúpido. Quase todos os meus amigos têm fidalgos na família, benza-os Deus. Eu só tenho singularidades, semi-humanos, semideuses, enfim. Ah, mas o meu avô paterno era narigudo e cantador. Um poeta, um poeta repentista, cantador ao desafio nas manhãs de domingo, na tasca do Cosme, em frente da capela.
Era o ano de 36, Março frio, aguacento, desconfortável. Depois da missa, as mulheres, xailes pretos, tiritantes, pendulares, apressavam-se para casa. Os homens embicavam para a tasca e era preciso que as velhas, num linguajar de escândalo, os viessem buscar para jantar, já pra lá de afogueados do cantaréu e do maduro.
Mas o Sancho, fraco cantador, de rima pobre ou ausente, e ainda assim candidato ao lugar de invejável cantador que o meu nariguento avô ostentava por direito e mérito, forjado em tantas porfias, atirou-lhe assim: “Oh João da Milheiroa / não sei que sorte macaca / Ires casar a Portomar / Ca zarolha do maneta”. Olha no que te meteste!. O meu avô, olhando-o de alto a baixo: ”Se a minha mulher é feia / A tua também o é / E a tua vendeu a crica / Por ‘ma xícara de café”. Silêncio de morte. Mãos às navalhas. Curiosidade geral. Morbidíssima. E o meu avô continuou, calmo: “Foi na feira da Piedade / Meu amigo Zé Maria / Mas se isto fosse verdade / Olha que eu não to dizia.” Abraços calorosos de novo, marcação da próxima cantoria e o caldo de couves quente para repor a flora das barrigas…
(Sabem por que vos contei isto? Porque o meu bisavô era mesmo maneta, minha avó zarolha, meu avô impagável cantador, meu pai moleiro e eu, é claro, sou estúpido…)
Bom Natal.
(Imagem daqui)
1 comentário:
e porque é que se esconde o plebeu e pobre estado e se apresenta o fidalgo possessivo?
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