Meu pai era lavrador, mas, nos primeiros frios do inverno, aquietada a faina das colheitas, fazia rodízios para azenhas. Foi num desses dias felizes de há 50 anos que, enquanto desbastava uma pena com a enchó, me contou uma história a que, com visível ar de mistério, chamou “coisas do diabo”.
“Estava um homem afiando um fueiro, tal como eu faço agora com esta pena, quando foi abordado por um estranho que lhe disse que tivesse muito cuidado, que podia cortar o nariz. O carpinteiro achou o conselho muito tolo e continuou o seu trabalho. Porém, o estranho reforçou o aviso: cuidado, que podes cortar o nariz.
- Mas como posso eu cortar o nariz, se estou a afiar um fueiro que está a meio metro de distância dele?!.
- Já ficas avisado: tu vais cortar o nariz!
- Irra que você é burro. Para eu cortar o nariz teria que fazer assim. (Aqui o carpinteiro aproxima a enchó do seu rosto e executa com ela um movimento para exemplificar o único modo como poderia cortar o nariz).
E cortou o nariz.”
É. A nossa memória ri-se de nós, da nossa cara cada vez mais evanescente, do nosso nariz cada vez mais inverosímil.
(Imagem daqui)
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