23 de outubro de 2011

Alguns casamentos depois…

O modesto proprietário da carpintaria Torrado & Irmão viu, pela primeira vez, e por ela se apaixonou perdidamente, Helena Freitas de Macede…

Amadeu Torrado casou hoje, na capela da sua aldeia, pela primeira vez na sua vida. O feliz enlace acontece numa data particularmente mítica da vida de Amadeu e mesmo da existência humana. Neste dia 23 de Outubro, cristalizaram--se alguns acontecimentos importantes quer para a espécie humana em geral, quer para a fabulosa espécie de Amadeu, em particular.

Devo lembrar que Amadeu não foi (não é), nem de longe, um interventor particularmente relevante no acidentado decurso da História hodierna. O seu modestíssimo contributo resumiu-se à produção artesanal de umas quantas janelas e portas de acácia para as casas dos seus vizinhos. Porém, Amadeu sempre enfeitou os acontecimentos comezinhos dos seus rudes e monótonos dias com efemérides de mais proeminente pedigree. É assim que Amadeu Torrado articula a data do seu nascimento, neste dia de hoje e no conturbado ano de 1944, com o desencadear da mais sanguinária batalha naval da Segunda Grande Guerra. É assim que Amadeu conta que Pasternack, escritor russo, foi prémio Nobel da Literatura, com “Dr Jivago” , no exacto dia e ano em que ele próprio, o modesto proprietário da carpintaria Torrado & Irmão, viu, pela primeira vez, e por ela se apaixonou perdidamente, Helena Freitas de Macede, dois anos mais nova do que ele, mas já ostentando, ao tempo, previsíveis delícias de mulher.

Aguçado o desejo por predicados femininos que haviam de ser, ficou Amadeu, até hoje, remoendo consigo a jura de a apalpar, demorada e

amadeu

sensualmente, com as suas manápulas de plaina, logo que um intervalo oportuno surgisse em algum dos ciclos matrimoniais da sua Helena.

De então até hoje, o coração de Amadeu manteve-se fiel, no pensamento e no registo civil, à adorada Helena, apesar de esta ter vindo, ao longo da sua vida, a coleccionar tantos casamentos quantas as decepções de Amadeu, que assim via prorrogar-se indefinidamente o momento em que a cingiria nos seus braços eternos.

Foi assim que Amadeu assistiu, aos vinte e cinco anos de idade, ao primeiro casamento da sua amada, no exacto dia e ano em que Nixon retira do Vietname. E, a seguir, assiste ao segundo, em 1988, quando o furacão Ruby afunda o Dona Marilyn, nas Filipinas, matando 566 pessoas. Tudo isto em 23 de Outubro, tudo isto na vigência do amor incondicional de Amadeu.

Foi hoje, pelas 11 horas da manhã, no dia de aniversário dos seus 67 anos, que Amadeu, embora mais desajeitadamente do que sonhara, amassou, com as suas mãos de serrote, o quarto vestido nupcial de Helena Freitas de Macede. O fato de Amadeu Torrado era o do Crisma…

(E, pela primeira vez na sua vida, Amadeu não conseguiu aliar a este evento nenhum outro de semelhante grandeza)

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3 comentários:

Anónimo disse...

Muito giro mesmo. A (boa) narração é uma arte (eu não a possuo) e a história de um homem simples e as efemérides a acompanhar são do melhor. Humor nunca falta.... Gostei muito e quem me dera saber contar histórias... Faty

Anónimo disse...

Uma história interessante e bem contada, associando momentos pessoais a tragédias da humanidade. Concordo com a Faty, o João é um bom narrador! Marla

P.S.: Um momento especialmente hilariante desta leitura foi quando o "disco" da rádio "clássica & jazz", que gosto tanto de ouvir, encravou. Não sabia que tais incidentes podiam ocorrer online!

Anónimo disse...

Uma excelente narrativa. Muito humor numa escrita bem cuidada. Assim vale a pena vir até aqui... :)

Igor N.