24 de abril de 2009

Não existe literatura do encómio, meu caro…

literatura1 Sempre que alguém escreveu panegíricos, arrependeu-se um dia. Músicos endereçaram odes triunfais a ditadores de esquerda e de direita e rasgaram as partituras. Grandes Poetas debitaram loas aos seus heróis e descreram de tudo na última página. Dramaturgos sublimes elevaram aos píncaros os seus heróis colectivos e nunca mais foram lidos.

A única literatura que perdura é a da mordacidade. O único texto decoroso e honesto corre contra a corrente. O único poema que nos arrebata é o do ressentimento cristalizado.

Tudo o mais fica aí a perpetuar a mediocridade de quem o fez, a limitação triste da triste humanidade…

(Imagem daqui)

Radio Days

radio antigo Lembraste-te, pois foi… Eu sei que ficaste apaixonado pelo Radio Days. A propósito dos Mass Media que leccionas em Inglês e, mais especificamente, a propósito da importância da rádio nos anos 40, ousaste levar o filme para a aula. Enquanto te deleitavas com tudo o que Allen te propunha, desde a música até os inteligentes diálogos de cena, passando pelos escultóricos receptores de madeira e a guerra dos mundos de Welles, os teus alunos adormeciam lenta e despudoradamente na semi-obscuridade da sala. E tu não entendeste que porra falhou ali.

Ou já previas tudo isso, mas ainda assim apostaste. E perdeste, já se vê.

(Imagem daqui)

Suicídio de nadar

truta Os certinhos que eu conheço (e cada vez conheço mais) nadam da nascente à foz. Eu nado da foz à nascente, como uma truta suicida. E caio directo na boca do urso…

(Imagem daqui)

18 de abril de 2009

Névoa, areia e suplemento salarial

nevoa É um nevoeiro pegado este processo de directorização das escolas públicas! Mal dá para ver a nossa própria estupefacção. Os labregos dos docentes, os pequenos, aqueles que realmente trabalham no sistema educativo, e mantêm, malgré tout, a máquina em movimento, olham para tudo isto com o seu mais recente ar de bovinidade compassiva. E, se alguém liga os faróis e tenta ver além da sua tromba, recebe logo uma mão-cheia de areia nos ditos, que logo o restitui à imbecilidade.

O novo senhor director vai receber um suplemento mensal de entre 600 e 750 euros, enquanto os docentes, estacionados há anos na mediocridade das suas carreiras, vêem multiplicar todos os dias o trabalho imprestável a que estão submetidos e os seus magros salários desaparecerem no dia 10 de cada mês.

Claro, é tempo de contenção. É a crise. E eu, que não vejo tanta crise assim, (pelo menos quando olho para as carteiras de alguns), fico imaginando como o nevoeiro cresce e alastra. areia

Não contem comigo, no entanto, para impugnar nada nem  ninguém. Apenas reclamo o direito de denunciar o escândalo que é um director de uma escola pública ganhar 3.000 euros mensais líquidos, enquanto os que se arranham na sua escola (nas aulas curriculares e nas aulas de apoio e de substituição, não pagas, e leccionadas em cubículos imundos, sem janela nem quadro; nos apoios conhecidos como salas de estudo a que nenhum aluno vai, mas que obrigam à permanência integral do professor; na planificação e preparação de aulas; na elaboração de materiais didácticos; na correcção, análise, avaliação e relatório de instrumentos; nas tarefas burocráticas que todos os dias recrudescem, como a elaboração de testes em conjunto, com critérios de correcção e grelhas de cotação homologadas, e actas e relatórios sobre cada treta que se faz ou deixa de fazer na escola) pouco passam dos 1.000.

Prefiro nevoeiro a areia. Dói muito menos nos olhos…

(Imagens daqui e daqui)

Coçando a cabeça… (2)

coçar Curiosamente, parece também avolumar-se a ideia de que o ensino privado, além de mais barato por aluno é também melhor e mais eficaz. Quem tem dinheiro para fazer estudar o filhote numa escola privada paga o estudo do seu próprio mostrengo ao privado, nas propinas, e paga o estudo dos mostrengos dos pobres ao estado, nos seus impostos. Nada mais cristão…

Mesmo pagando duas vezes, quem tem dinheiro admite sempre preferir o ensino privado ao ensino público. Não será, certamente, porque lhe fica mais em conta. Obviamente que deve ser porque o privado vai dotar o seu rebento de estranhos instrumentos que o elevarão a pastor da carneirada que o público debitará. A manutenção da carneirada terá que ser atribuída ao serviço público de educação, enquanto a produção dos respectivos pastores será atributo da escola privada. É a divisão de trabalho. Cristianíssimo outra vez.

Um senão: para construir essa mole meio zombie, mas acatadora das políticas vigentes, o ensino público vai precisar de um contingente de professores burros. A escola pública ainda não possui, infelizmente, esse tão desejado contingente. Mas está a trabalhar acerrimamente para isso. E está no bom caminho…

(Imagem daqui)

Na cervejaria, às seis da tarde

mendigo - Sou completamente contra a abolição do sigilo bancário…

- Compreendo. Tens medo de não saber explicar a origem do teu dinheiro…

- Não. Tenho medo é que me gozem…

(Imagem daqui)

a palavra dos outros

A escritora brasileira Karla Jacobina

A encantadora Karla seduz a todos nos palcos brasileiros, ou a maneira inteligente de dizer o íntimo, pra ninguém botar defeito. Leia-a, por exemplo, aqui.

16 de abril de 2009

Publicidade enganosa

publicidade Para mostrar as suas virtualidades face aos planos curriculares, as escolas mostram desde já as suas ofertas educativas ao mercado concorrencial. Muitas investem alguns milhares de euros em vídeos promocionais executados por equipas de jornalistas profissionais. É vê-los, acompanhados dos seus chairmen-to-be, escolhendo os ângulos mais fotogénicos das salas, dos ginásios, das bibliotecas, das alunas, das cantinas e dos bares. Não, não falo de escolas privadas. Estou a falar de escolas da rede pública. Para um homem como eu, habituado a entender o ensino público como um sistema organizado, colaborativo e sem concorrência ou disrupção internas, tais promoções fazem tanto sentido como uma viola num enterro.

Uma pergunta se impõe: quem paga estas promoções? Será o min-edu, o director-que-há-de-ser, o partido do governo, os contribuintes-em-vias-de-falência, a União Europeia, ou a puta que os pariu? Se alguém souber, me responda por favor. É que isto de estar a assistir a um filme trágicómico sem entender a história não dá com nada…

(Ah, se a resposta for a última hipótese, é bom começar a pensar na legalização da profissão da mamã, certo?...)

(Imagem daqui)

15 de abril de 2009

Reflexão com folar ainda quente…

folar Como pudeste pensar que as férias duravam para sempre? Eis-te de volta ao trabalho, mais esfalfado do que estavas antes delas. Os alunos, esses sim, refrescaram-se por dentro e por fora. Voltaram mais energéticos, mais demolidores e tortuosos, mais implacáveis do que nunca. Tu nada podes contra o vigor indomável da sua saúde. Quisera-los mais brandos, mais calados, mais frágeis, talvez mais deficitários, um pouco atormentados até, para então poderes ajudá-los. É a tua função. Mas descobres dia a dia que eles não precisam de ti, de ti que só lhes ensinas baboseiras, só lhes sugeres trabalho, esforço, renúncia, reflexão, decência, organização, método, estudo e o caneco…

(Também eles já descreram de ti, já não nutrem qualquer esperança de fazer de ti um homem feliz…)

(Imagem daqui)

3 de abril de 2009

Repescando tralices

relogio_contratempo3 03 04 2007

Há exactamente dois anos, no Tralapraki, um qualquer fait-divers visando o Serviço Nacional de Saúde (já na época muito contestado) levou-me a escrever isto.

Vou ser famoso, prontos!

fame Já decidi: quero ser famoso. Tenho praticamente todos os requisitos: sou estúpido, feio, pobre e não sei fazer praticamente nada. Nunca serei rico, nem belo, nem inteligente. Resta-me, portanto, ser famoso.

O meu problema com relação aos requisitos é que lhes falta um pouco de radicalidade. Sou estúpido, mas não sou o mais estúpido de todos. Sou feio, mas conheço pelo menos um tipo mais feio do que eu. Já é famoso, é claro. Sou pobre, mas tenho um modesto e virtuoso emprego que me dá o sustento dia após dia. Não sei fazer nada, mas os famosos sabem fazer isso bem melhor do que eu.

Enfim, não conheço maior impedimento à fama que ser quase normal. Preciso urgentemente de me anormalizar um pouco.

Mas não vou desistir. Com o que me sobrou do salário deste mês, comprei uns óculos escuros. É o primeiro passo, vocês não acham? Não será muito, mas um primo afastado meu é Presidente da Junta e...

(Imagem daqui)

2 de abril de 2009

Coçando a cabeça… (1)

coçando Estudos recentes parecem provar à saciedade que o custo médio de um aluno na escola pública é mais elevado do que o custo do mesmo aluno na escola privada. Esquecendo, por instantes, a eventual diferença de estado inicial entre estes dois alunos, o fenómeno explicará, certamente, a tentativa, por parte do estado, de reduzir substancialmente o peso do ensino público, transferindo grande parte do esforço orçamental para a esfera privada. Faz todo o sentido.

Porém, o estado precisa de um ensino público, como de pão para a boca. Não para garantir a tão proclamada igualdade de oportunidades (pois essa quimera alucinada este ensino público não garante de facto), mas para produzir uma massa enfileirada, meio amorfa e só medianamente estúpida, porém formalmente qualificada (embora, de facto, destituída de quaisquer qualificações), uma massa que saiba corresponder socialmente ao apelo do regime autocrático mais acéfalo que se conhece: a democracia parlamentar e a unidade europeia.

Será, então, para isso que serve a escola pública, onde um quarteirão de pessoas tenta diariamente impingir aos jovens o respeito e o apreço por todos os carneirismos bem pensantes e politicamente correctos da representatividade europeia? Se não for para isto, para que raio estará ela a servir?

(Imagem daqui)

PS. Para que conste: o autor é acérrimo defensor de uma escola pública de qualidade, ou seja, outra escola pública.